Ata de Sessão Solene da Academia Nacional de Farmácia, realizada a 22 de junho de 1949
Aos vinte e dois dias do mês de junho de mil novecentos e quarenta e nove, à rua Moncorvo Filho, número vinte, na sala de conferências da Escola de Saúde do Exército, nesta cidade do Rio de Janeiro, reuniu-se em sessão solene a Academia Nacional de Farmácia, sob a presidência do farm. Gerardo Majella Bijos, secretariado pelos acadêmicos Adauto Rodrigues Costa e José Eduardo Alves Filho. Abertos os trabalhos, foram convidados a tomar parte na mesa os professôres Luiz de Faria, Oswaldo de Oliveira e os Presidentes da Secção de Farmácia da Academia Nacional de Medicina, da Associação Brasileira de Farmacêuticos, da Associação de Farmacêuticos do Estado do Rio, da Associação Brasileira da Indústria Farmacêutica, da Associação dos Professôres de Farmácia, o Diretor da Faculdade Nacional de Farmácia, o representante da Federacion Farmacêutica Pan Americana, Federação das Associações Farmacêuticas do Brasil e da Academia Brasileira de Medicina Militar, respectivamente professôres: Abel de Oliveira, Militino Cesário Rosa, Miguel dos Santos, Rangel Filho, Virgílio Lucas, Mário Taveira, Alvaro Albuquierque, Lacerda de Araujo Feio e Major Paulino de Mello. O sr. Presidente anuncia acharem-se na ante-sala os farmacêuticos Júlio Eduardo da Silva Araujo, Paulo Seabra e Luiz Afonso Juruena de Matos, os quais serão empossados e para introduzí-los no recinto designa os acadêmicos José Scheinkmann, Paulo da Motta Lyra,·Olyntho Pillar, Deusdedit Batista da Costa, Alvaro Albuquerque e Nuno Pereira. Sob palmas e tendo a assistência de pé, o senhor presidente ao apôr as medalhas simbólicas da Academia nos membros honorários Júlio Eduardo da Silva Araujo e Paulo Seabra e no titular; Luiz Afonso Juruena de Matos, profere, na oportunidade, palavras encomiásticas para cada um, que a seguir tomam assentos em seus lugares. Em seguida, o Presidente Majela Bijos profere uma oração gratulatória recebendo os novos membros honorários. Finda a sua oração; é concedida a palavra ao acadêmico Oscar D’Utra e Silva, que·dá boas vindas ao novo titular; pronunciando excelente discurso. Na tribuna o acadêmico Juruena de Matos agradece e profere, ainda, rápida conferência sôbre os “isótopos”. Na tribuna, em seguida, o farmacêutico Júlio Eduardo da Silva Araujo, no seu e no nome do acadêmico Paulo Seabra, discursa, para agradecer a investidura efetuada. O acadêmico Alvaro Albuquerque; interpretando o pensamento da Academia, apresentou a proposta que se transcreve, aprovada unanimemente pela casa. A proposta está assim redigida: “Senhor Presidente. A Academia Nacional de Farmácia, sob a vossa esclarecida e operosa presidência, apesar do seu caráter científico, embora não afeita a questões que não as da ciência e da cultura, não é um organismo frio, marmóreo, insensível às obras da benemerência e do patriotismo. Ela vibra, como o coração e o pensamento dos brasileiros que a constituem ante os grandes e nobres feitos da bondade humana e da solidariedade cristã. E, nessa vibração magnífica, a Academia Nacional de Farmácia sente perfeitamente que, espiritualmente, se solidarizam com ela o pensamento, o afeto e a administração de tôdas as entidades sábias do Brasil. A obra benemérita que, neste momento, a empolga é a realizada, piedosa e apostolarmente por Sua Eminência D. Jayme, Cardeal Câmara, no terreno social e no terreno· moral, obra que ficará perpetuada na memória dos seus compatriotas. Por isso, esta Academia, não podendo reprimir um impulso de aplauso, e solidariedade, que, certamente, será seguido ufanamente por tôdas as suas co-irmãs científicas e culturais indica a Vossa Excelência, senhor Presidente, que esta casa lidere um movimento de consagração dos homens de ciência do Brasil, ao grande Cardeal, Arcebispo do Rio de Janeiro”. O presidente, a seguir, homenageia e agradece o “Correio do Mundo Farmacêutico” na pessoa de seu diretor, o jornalista Cássio Senra, pela contribuição trazida com a divulgação dos trabalhos acadêmicos, mormente quando da ocasião do 1° Congresso Pan-Americano de Farmácia. Para coordenar os trabalhos do 4° Congresso Brasileiro de Farmácia, o sr. Presidente nomeia os acadêmicos Abel de Oliveira, Olyntho Pillar, Paulo da Motta Lyra e Virgílio Lucas. Nada mais havendo a constar, lavrei a presente ata que a escrevi e que vai assinada por mim, primeiro secretário, e pelo senhor Presidente, que a achou conforme. – (as.) Adauto Rodrigues Costa – 1º Secretário e Gerardo Majella Bijos – Presidente. – Lida e aprovada na sessão de: 14 de julho de 1949.
Fonte: Anais da Academia Nacional de Farmácia. Vol.I. Anos 1949 – 1953. Rio de Janeiro: Casa da Farmácia. 1953. p.271.
Texto transcrito do original
Discurso do Acadêmico J. E. Silva Araújo, em nome dos membros honorários ora empossados.
“Preclaro Presidente; ilustres e queridos colegas.
As honras dependem das idéias que se lhes liga.
“Ela é bela sendo recebida como uma dádiva e resulta desprezível, quando exigida, procurada ou implorada”.
Palavras de São Francisco de Salles.
Essa munificência com que somos agraciados, é invulgarmente insigne e só a gratidão a sobrepassa.
Não a recebemos com sentimento de Filotimia e sim com pura emoção.
As emoções mestras, no conceito dos psicólogos, são as chaves que desceram à porta de um compartimento, onde moram a esperança e a saudade.
É a segunda que surge, nesse momento, do escrínio da alma, trazendo em seu regaço pulcras grinaldas e melancólicos goivos; claridade e névoas, nas palavras da tribuna.
De minha parte, cumpre seja proclamado, é bem maior a recompensa da recolta do que a que toca ao meu egrégio companheiro, visto como fui honrado por Paulo Seabra com outra dignificante investidura, a de articular em bissonante acento o nosso agradecimento.
Se é de vulto o galardão, afronta-se enorme a responsabilidade.
Certo, Seabra sentiu o que resultaria, como carência, exiguidade e pobreza, o desastre do depoimento, tivesse eu a desventura de o produzir por conta própria. E, vós o sabeis, Seabra é aquêle que acerta, mesmo à vista do submissor “errare” humano, como evidentemente acontece nesse momento.
Aliás, eu pleitearia a parte e a cedência dos páramos da tribuna, a me ser acordada pela vossa benignidade.
Sr. Major Gerardo Majella Bijos, sois militar e não deixareis jamais de ser Farmacêutico; aquêle atributo se reforma e essa qualidade não se depõe.
Por muito que, com justa ufania, a ambos prezeis devidamente, a vossa fidelidade basilar, a dogmática, em paralelo, terá que ser pela especificidade qualitativa, sem ofensa aos ornatos do atributo.
Sois, pois, disciplinado, meticuloso, bravo e prudente, no feixe arrumado pelas características dos vossos galões e pelo teor de vossa ética profissional.
Do exercício de profissão houvestes o equilíbrio dos doseamentos, o manejo ponderado dos princípios heróicos, a proporção dos veículos e o mais, ensinado e aprendido. E, do desempenho marcial, a essência da ordem, da disciplina, o brio e a firmeza das atitudes.
Eis porque quisestes e obtivestes na escala das promoções, obedecida pelo plenário desta casa, uma foi mérito e a outra, a accessória, por antiguidade.
Seabra e Bijos! A ambos me sinto solidamente vinculado e permito-me relembrar a procedência capital dessa indestrutível e suave aliança de corações.
Por ambos fiei, serenamente, perante a prestigiosa e veneranda “Academia Nacional de Medicina”’.
A um, oficial e praxisticamente apresentando, a quantos já o admiravam e o aplaudiam, no âmbito da sábia corporação. Ao outro, muito jovem ainda, ao transmitir a poltrona que recebera do digno e conspícuo Antonio Ferrari. Compassiva foi a aceitação do legatário, que viria restabelecer o brilho da cadeira e acrescer o cabedal de sabedoria da “Secção de Farmácia”, tão nobre nos fastos associativos.
Com Majella Bijos, a quem deferia o lugar, comprometido por longo período, em lamentável noite polar de 25 anos, eu sabia restituir à Academia, insignia de alcandorada valia e, assim, pleiteava absolvição, a favor do ônus do meu dilatado exercício.
São datas exultantes que me ficaram indeléveis no quadrante da alma.
Bem haja, hoje, os tendo juntos, comover-me fundamente ao contemplar os merecidos lauréis, justificativos da palavra empenhada à “Academia”. E, o saber que se quita a palavra de empenho, é gáudio, a despertar, para os homens probos, um sabor de ambrosia dulcificante, no recato da consciência.
É ufania a que se sobrejunta honra.
Reputo-me a essa honra, mais valiosa que a vida, que não é transitória e transcende e sobrevive à sepultura; que foi a virtude de nossos Pais e será o estímulo de nossos filhos; que contêm em si, toda a santidade, todo o respeito, todo o heroísmo que decoram a personalidade e a exaltam, na segurança de ter bem vivido.
Cumpre-se o voto da “Academia Nacional de Farmácia”, recebendo dois novos titulares e, é mister ressaltar, pela dupla escolha, está de parabéns essa fecunda corporação.
Na promoção imposta pelo mérito, cumpriu a “Academia” um ato de puríssima justiça; na exarada por antiguidade, teve a ventura de exercer um gesto de bondade.
Adquirindo regiamente, tolerável é, sem desdouro, possa a “Academia” dispender em parcela de generosidade, e, de tal sorte, pode ser justa, sem deixar de ser bondosa. E o faz sem “capitis diminutio”, porquanto já alguém sentenciou: “O que gastei, perdi; o que dei, ganhei”.
Que maior sublimação se pode conferir ao espírito e ao coração do que êsse duplo fruir? E a Academia o consegue pletoricamente, associando as duas largas idéias num só ato. Encômios pois à Academia, por justa e bondosa.
Ao adquirir um e ao agasalhar o outro, a “Academia” dirá: a Seabra não ser êle o pássaro maldito, para o qual se tornou pequeno o ninho do seu berço, e significará ao segundo que bendito é o ninho, cuja margem de acolhida e cuja ramaria farta são fronde e alfombra, benigna, tépida e amorosa.
A Paulo Seabra, objetivamente apreciastes, julgastes e concluistes. Julgamento sem fantasia, descendente de meditação, descartado de paixões. A mim encarastes subjetivamente e, direi mesmo, egoisticamente, porquanto, realizar algo reclamado pela afectividade, é um prazer que nos conferimos. De tal modo, aí, sois vós, os premiados, em derradeira análise.
A um, agradecereis pelo estímulo ao vosso armorial e ao outro, certificareis não ser êle um egresso e que o coração não julga, não aprecia. – Apenas ama.
E justificará, por tal sutileza, os critérios das escolhas.
*
Já vai alongada a arenga. É tempo de dizer o que cumpre, na oportunidade seja dito.
De Seabra direi como puder, souber e convenha; de mim, só accessoriamente o farei, pois nada de relêvo se pode aguardar e consentir.
Revivo 1922-1923.
“1.º Congresso Brasileiro de Farmácia”
Exercia eu, discretamente, o meu labor oficinal, quando, com olhos de lince, descobriram-me dois diletos confrades.
Um sorriso, um abraço, um ultimato.
Alvaro Varges, êsse cavalheiro portador de irresistível simpatia e doce energia, lhano · e universalmente querido, sedutor perigoso, quando em jôgo a causa de Farmácia; diplomata que sabe sorrir e sabe exigir, tudo a seu tempo e a propósito; que vem com o espinho de uma dificuldade e volta com a guirlanda de um triunfo.
Acompanhava Varges, o plenipotenciário de São Paulo, a serena, a conciliadora, a lacônica, a quase silenciosa figura de modéstia; homem que não precisa rir nem chorar para se impôr: Cândido Fontoura. ·
Foi tremendo o choque. Quase desfaleci, diante da intimativa, entre aquêles dois possantes manobreiros: um, muito alto, fazia-me erguer a cabeça, que tinha que se abaixar, em seguida, para enxergar o outro, tamanha e sedução de uma drágea perfumada.
E nessas descompassadas alternativas, provocadas pela tática ardilosa dos meus dois algozes cordiais, acabei vertiginoso e estonteado. Passei uma noite branca, ouvindo por um dos ouvidos, o martelar de um, “serás o Presidente da Comissão Organizadora” e, pelo outro auditivo, “São Paulo, que mora em teu coração, não aceita recusa”.
E, como eu, ainda em plena idade de servir, não poderia escapar sem acanhar a amizade, capitulei, com tôda a brava temeridade de Don Quixote de Farmácia.
A influência da idade tem três fases: juventude, poesia; maturidade, ação; velhice, filosofia. Eu vivia a segunda fase e, de pronto, fiz-me à vela.
Se, em verdade, não senti o estalido aludido pelo sábio Vieira, tenho por certo, a língua ardente do Espírito Santo me aclarou o sentimento. E tudo se resolveu por milagre, na escolha da “Comissão Organizadora” dos trabalhos.
Com vaidade insopitável, tenho a declarar ter sido essa a melhor manipulação farmacêutica de minha vida.
Dos esforços e dos emergentes escolhos afrontados e evitados, das dificuldades, dos sobressaltos, das emoções; aí estão vivos mercê do céu, três bravos de Campanha e a êles se pergunte como nos salvamos dêsse proceloso pélago, sem que a nau ao meio se partisse. Varges, Seabra, e Souza Martins, digam êles dos dias de luta, do mal dormir, do vertiginoso corre-corre, da ufa trepidante.
A ceifadora impiedosa já arrebatou os demais que, a par dos sobreviventes, foram dignos e perseverantes: Isac Werneck, Benevenuto de Lima, Rodolfo Albino, Ribeiro de Paiva.
Do alto desta tribuna, na majestade da corporação máxima de nossa classe, para êles peço recolhimento, reverência e imorredoura gratidão.
Foi então que vi, pela vez primeira, êsse que jamais deixei de fitar com admiração, alegria e afeto – Paulo Seabra, quase criança na idade e quase gigante nas proporções da operosidade e no talento de “bienfaire”. Egoisticamente, resolvi tirar dêle e do seu engenho, tudo o que pudesse ·apreender e pilhar. Em verdade, cada um, entre os demais daquela constelação lhe estava à altura: inteligência, boa vontade, discrição, devotamento, idealismo, camaradagem, denodo, não faltaram ao trepidante pelotão. “Ab uno disce omnes”.
Ao Presidente, escudado pela energia e pela lucidez dos seus brilhantes confrades, competia ouvir, procurar compreender, e até, uma que outra vez, ter a ousadia de opinar, contando com a tolerância da fraterna gentileza que liava os combatentes.
Seabra trabalhou, multiplicou-se e quase se esgotou pela causa santa.
Dessa refrega, em que todos estavam atacados disso que Mirabeau chamou o “fanatismo da esperança”, já êle saiu general e grande credor da Farmácia. E, hoje que o vemos no ápice da glória, podemos ter a exata visão das suas nunca desmentidas qualidades.
Competência, honestidade, modéstia, consciência de responsabilidade, que fizeram o brioso soldado e o conduziram à conquista do bastão marechalício, no seio de sua gente.
O seu prestígio é hoje, para justo orgulho nosso, mundialmente reconhecido e ecoa nas abóbodas do saber universal.
Por essa época encontrava-se bem modesto o nível de nossa Farmácia, mas, repetindo verso de um poeta nosso, J. D. Fernandes.
“Em todo o ser, por ínfimo que seja,
Há um secreto desejo de ascendência”.
podemos hoje verificar o ascenso e o quanto se nobilitou a nossa profissão.
0 1° Congresso Brasileiro de Farmácia foi, sem favor, uma etapa de revisionamento, de ajuste de primores esparsos e dispersados.
Tínhamos que represar, colecionar, dar ordem e fazer render, nesse entreposto de triagem e de ação, tudo o que antes se tentara e o quanto, em seguida, haveria a fazer.
Tôdas as invulgares figuras do nosso patrimônio nos animaram: presença e gestos legados, tudo nos apoiava, inspirava, encorajava.
Com essa veneração e com essas esperanças, produziu o “1.º Congresso Brasileiro de Farmácia”.
A classe apareceu, revelou-se, coêsa e compacta, em tôrno da demonstração de vitalidade. De todos os recantos do Brasil nos chegou o confôrto de animação dos grandes nomes de Farmácia: César Diogo, Orlando Rangel, Diniz Gonçalves, Jovelino Mineiro, Carlos Schmidt, Luiz de Queiroz, Malhado Filho, Francisco Giffoni, Granado, Heitor Luz, Werneck, Ismael Libânio, Borba, Venâncio Machado, João Daudt, Moura Brasil, Alfredo Moreira, Baptista de Andrade, Coriolano de Carvalho e quantos mais, que a infidelidade de memória nos esteja a relegar à injustiça do não mencionamento.
Cumpre, por oportuno, dar destaque ao apoio eficaz, dispensado pelo Presidente da República, o ilustre e saudoso Dr. Epitácio Pessoa, concedendo o quanto pedimos aos poderes públicos e interessando-se, esclarecidamente, pelo nosso movimento, com relação ao Congresso.
O seu crédito de confiança, além de material, foi verdadeiramente animador para a “Comissão Organizadora”.
Paulo Seabra – apontemo-lo como o homem venturoso. Dessa dita a que se permite a aferição, entre amigos e admiradores.
A felicidade profissional daquele que vive a vida da sua obra, na invulgar estrutura das suas criações.
A sua tarefa aí está, patente e opulenta, em cadência ascensional, numa ritmada expansão de colmeia laboriosa, com as preocupações instintivas e enérgicas de não se deixar arrebatar pela vertigem da vaidade, possuída dessa “Gran-Synderesis” a que se refere Baltazar Gracian.
Homem feliz, cuja vida contemplada na equidistância marcada pela maturidade, entre o bêrço e a eternidade, da origem ao marco final da existência visível, se tem conservado sempre igual, sem traições ao seu mandato moral de manter-se êle próprio, de ser o que é e o que deve ser, fiel aos princípios concretos e inatos do seu caráter, do seu pensamento e da sua vontade.
O porte de sua marcante operosidade é imenso, uniforme, fulgurante e duradouro, na conformação estética de sua visibilidade.
Vós, melhor do que eu a conhecei e prezais. E disso, sinceramente me lamento.
Desnecessário, pois, dar agrado e engalanar o sujeito do elogio. Digamos antes da sua obra.
Cada vitória traz em seu seio o resíduo de um desgôsto, mas essa algia não consegue entibiar o lutador. Ninguém o vence. Os que o admiram são legião; os chocados, ridicularia.
Dar vida à idéia; realizar um ideal, vê-lo corporificar-se, senti-lo, marchar, vencer, eternizar-se, tudo isso cria na alma a magnitude de exaltação, alva e pura.
Mas, nos passos que transcendem para êsse ácume, há também a assistência tenaz do sofrimento; as dores são a sombra vigilante do sucesso.
Há lágrimas que são ternura; pranto que é oferenda; soluço que é carinho; queixa a pedir consôlo; sorriso que não eclode; esperança que quer viver; crisálida, que teima em ter asas.
Tudo isso é constante e de tudo se sumaria a consecução do renome; no colorido do pomo sazonado da glória, quando as mãos, na arduosidade do labor se tisnam e afadigam, para que fulja o intelecto, na graça dos detalhes que dão a majestade do conjunto.
E como redizer o que de Paulo Seabra se poderia, premida a tribuna na pelo medido tempo disponível?
Um traço apenas, reclamado pelo acatamento de toda uma classe e, pode-se dizer, pela deferência de tôda uma geração: Paulo Seabra é a continuação profissional do esplêndido Mestre Orlando Rangel, essa figura perfeita de virtudes, honradez, sabedoria e bondade.
Orlando revive e ressurge na obra de Seabra e na sua conduta. Essa, a maneira condigna de pedir aos que se foram, a luminosidade do seu espírito, para o acêrto dos passos do nosso caminhar.
Cumprindo a imposição sentimental de evocar a memória impoluta de Orlando Rangel, é, para nós, ambos os recipiendários, vê-lo a presidir êsse ato, onde se respira uma atmosfera feita dos eflúvios de duas ingentes personalidades morais: a justiça e a bondade, sob cujos pálios transpomos o ádito desta douta companhia.
“Emunctae naris homo”, Seabra, em tôdas as épocas de sua existência se lig·a a essa outra “vida íman”, com respeito, reconhecimento e fidelidade. Ternura profunda, intrépida e submissa a um só tempo, sem descuidos, alerta e incansável.
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Rememoro, em seguimento, a adorável e veterana “Associação Brasileira de Farmacêuticos”, nascedouro desta Academia, arena magna dos nossos prélios e do quanto decora e eleva a nossa grei. Encaro, saudoso e comovido, nos perfis ilustres dos seus Presidentes, a era construtiva do seu invejável périplo.
Homens de saber e inspiração, entre êles, os fundadores, os mortos, os vivos, os benfeitores.
E, expressão de resumo, a elegância do Prof. Abel de Oliveira, generoso, hábil e sincero.
Farmacêutico em cada uma das vinte e quatro horas do dia, mourejando à luz do sol e sonhando, sob o luar, que vigia as suas meditações de poeta, com o fastígio da sua profissão, no campo de combate de conseguir e reivindicar, e nos átrios do ensino às contemporâneas gerações de colegas nossos.
A sua inteligência culta, ao seu coração e à sua urbanidade, muito deve a Farmácia nacional.
Essa palavra de reconhecimento, reveste um gesto de retribuição e solidariedade, em que, ufano, acompanho Paulo Seabra, a êsse “meneur” abnegado e donairoso.
Marialva nas justas e torneios, a sua proficiência de conduzir, bastas vêzes aparenta o aspecto de ser conduzido.
Congratulações cabem aqui à veterana “Associação” ao ver na direção máxima dos seus destinos auspiciosos, a Militino Rosa, insubstituível pelo voto expresso de seus consócios. Austero e hábil profissional.
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A transmissão de brida e do meu quase imponderável espólio profissional, a destras mãos, no viso e no maneio, de farto justifica, com a mais consequente lógica, a razão de renúncia a que me acolhi.
A Virgilio Lucas, êsse colega exemplar, prestativo e ilustre, cujas luzes e cuja colaboração já anteriormente eu evocara, tive a ventura de ver confiada o que para êle, sendo fácil de receber, difícil era de aprimorar.
Do meu acêrto falam, com fulgor, os seus sucessos, nas diuturnas atividades dos laboratórios cometidas anteriormente, por irrecusáveis determinações, ao epígono obscuro, agora, vantajosamente substituído na investidura exercida pelo delicado colega, que monta guarda às tradições do velho estabelecimento, benevolamente estimado pelas contemporâneas gerações. É para mim motivo de enternecimento, a sua carreira, nessa fase e nessa posição.
Hoje, distanciado do contato das nossas lides, onde, bem vez, ombro a ombro pelejamos, os tropeços de tribuna me seriam intransponíveis, não me animasse a segurança de simpatia e da benevolência, nas provas de obséquio e atenção, de cada um de vós. Isso faz da Farmácia, mais do que uma profissão: ergue um lar para todos. Sem isso não me afoitaria a tanto risco.
Muito pelo invés, conhecedor do vosso prévio assentimento absolutório, transponho os pórticos de cordialidade de nossa mansão comum, em confiada postura.
É constante do saber antigo que, mesmo ingrato possa o filho pródigo participar da animada fartura da casa patrimonial.
Por sem dúvida é de valer, revogue-se o severo compromisso e a quietude do silêncio, para recolher, na clareira de um breve lapso, tôda a infinita doçura das luzes carinhosas do vosso talento e toda a tepidez do vosso afeto.
A renúncia e o silêncio são o aprisco de refúgio da velhice.
É nessa trincheira e nessas condições que se adquire a riqueza suprema das aspirações humanas. Dêsse tesouro, cuja guarda, segurança e acréscimo, independem de esconderijos que o ocultem, de varões que o encerrem e das avaresas que o poupem.
Cabedal que, ao alcance de todos patenteado, a trôco de nada liberado “larga manu”, se acresce, nobilita e abasta, no mealheiro da alma – a Humildade.
Nunca só se encontra e jamais na solidão se surpreende, quem sabe fruir o sabor da humildade.
No permeio das horas de calmaria, na profundidade do imo, as recordações são na opala de todos os reflexos, paledecidos pela poalha dos nevoeiros do tempo que flue e foge.
E, assim, vem a minha prudente velhice, do silêncio da natureza, ao chamamento dessa festa, ornada pelos paramentos da amizade, interrompendo a VITA UMBRATILS, onde o ouvido se adequou para perceber o divinum sussurrum.
Dêsse sedativo silêncio, onde se interpretam os sonhos coloridos das estrêlas, através do filtro das florestas; onde erram olôres emanados do mistério de resignação e de conformidade; da amena e tranquila humildade feliz, na marte-côr da luz crepuscular, nessa encruzilhada da existência, quando o dia esmorece e tomba, para ser devorado pelas trevas e pela algidez na noite eterna.
E devo à puridade confessar, a indiscrição que, de vez em vez, perturba essa tranquilidade, com o importuno pungir de um espinho acerado: a saudade não aquietada e que confrange no deleite. Saudade dessas vozes, dêsse recinto, de tudo o que sois, do que tendes feito e do quanto, em germe, está em vossos propósitos e em vosso espírito.
Entretanto, pelo dito, quero pleitear a justificativa e a licitude das renúncias de certas atividades, em advindas circunstâncias, como serviço valioso. São gestos não de fugir, mas de quitar-se com honra, pagando ao exato, o direito de para si guardar as rendas e o convívio com a tranquilidade, ao troco de a mais hábeis legar as guias da direção; os proventos é a harmonia dos clangores das vitórias.
Balcão da Vida – E, finalmente, rememoremos o que senti, vi, ouvi e aprendi, no contacto da Farmácia com a realidade crua da vida.
Vinte e cinco anos, frente ao sentimento de nossos semelhantes: os enfermos, os tristes, os desventurados, os ansiosos e os viciados. Tudo isso, rapsódia a revolver dolorosamente a profundeza da alma, acompanhante circunstancial, citada pelos dardos da profissão; testemunha irrecusada, nos autos de constatar as agruras, os estertores, as lacerações, de quantos a ciência, quase impotente e inerme, apenas conseguia mitigar e retardar a fatalidade do angustioso e terminal desfecho.
Muitas vêzes, intimadas as relações, confidente de queixas e lamentos, partícipe forçado do drama cruciante, ressurto dos destinos atrozes dos apunhalados pela cegueira da sorte adversa; submetido à afalgesia dos penares de cada um; Cyreneu de muitas cruzes, erguendo, com palavra ou gesto de lênir ou esperançar, as resistências vacilantes dos aniquilados e magoados. Propinador de bálsamos para muitas chagas morais, o Farmacêutico há de ser um miliciano da solidariedade, no desempenho de sua onusta missão humana.
Hoje, no decanato de função, quando já os olhos se ensaiam para a definitiva escuridão, às vêzes os cerro, para ver mais claro o quanto surpreendi e provei, nas linhas da batalha do meu exercício e repasso a vida, palpitante na evocação da planura do passado.
Painel bifronte de horrores e lampejos de beleza; esgares e sorrisos
Páginas de Dante, dia a dia folheados.
Nero, Aretino, Laocoonte, Lázaro, Francisco de Assis, Vicente de Paula: desfile fabuloso de paixões e estertores – A Humanidade.
A iracundez de punhos, fascinorosos e hirtos, fechados, a canoridade de almas, piedosas e mansas, ajoelhadas.
Limpidez da verdade e hediondez da mentira.
Aprendizado de surpreender na liquidez dos olhares sedutores, a viscosidade dos pauis das almas.
Desabrochar de esperanças e agonia de ilusões.
Aniquilamentos e ressurreições.
Dias de alvorada e têrmos de juízo final.
Ouropéis da matéria e andrajos do espírito.
O perfume da carne e a espurcícia da decomposição.
A parada dos sete pecados, caligem a escurecer a trilha do rebanho.
O fulgor das sete côres do arco da bonança.
O ritornelo das sete notas, a reger e harmonizar a sonometrla dos cânticos e o compasso dos aulidos.
O desfile dos dez mandamentos, acatados pela reverência e pela fidelidade, ou relegados e desobedecidos, pelos Irreverentes e infidentes.
A beberragem dos vários amavios e licores: o vinho na taça lavrada do Rei de Thule e o tóxico, na justa sinistra de Sócrates.
O santelmo da alucinação da “Fata morgana”, na fugacidade das miragens com que o vácuo arrasta e perde os sentidos humanos.
O “Discurso da Coroa”, o “Sermão da Montanha” a “Cântico dos Cânticos”. ‘
A fôrça da doçura, a riqueza da humilde bondade, a inanidade da temida arrogância, na congruência dos compassivos e na intolerância dos presumidos.
O prêmio da paciência e o castigo do orgulho.
A estultice abjeta e destruidora do injusto e a firmeza adamantina e construtiva do justo.
Dias de sombra, antiface da perversidade e da calúnia; horas de luz, entendimento da razão e evidência da honestidade.
Mendigos conformados e sublimes e potentados vazios e miseráveis.
Vícios de nucir, manancial do crime e virtudes de purificar – o “hábito do bem”, na frase de Aristóteles.
Essa psico-síntese da farândula oscilatória. Cortejo que visiono e que retumba, no lumaréu do distante contôrno, no vórtice de fôrça e da fragilidade dos homens.
Báratro ululante de riqueza e de miséria, onde tem acento, entono e vibração, brilho e opacidade, tudo o que resplende e dá colorido, que mortifica os olhos, confrange o coração e alucina o ouvido. Cosmorama de prutecências, cantos, chagas e revérberos. Nuvem espessa na estrada da vida, levantada pela insânia dos tufões turbilhonantes ou pela maciez das brisas confortantes.
*
Decorrido vai um têrço de século, curava-se a humanidade da hecatombe da guerra e da chacina abominável, ainda perturbada, pelo fragor dos ecos criminosos, pela náusea de carnificina brutal e pelo amargor das lágrimas de orfandade e da viuvez, em oportunidade idêntica a de agora, conclamávamos pelos liames indispensáveis, a irmanar o laboratório e a espiritualidade, como as duas colunas capazes de sustento para o reerguimento das gerações do porvir.
Sem o congraçamento íntimo dêsse consórcio falharia o FIAT garantidor do salvamento. Só essa bissetriz, baixada do ângulo em que se encontravam os povos, nesse giro do universo, indicaria o rumo da paz e da felicidade; sem ela, o apaziguamento teria o ciclo das vidas efêmeras; os estatutos de preservação se hastilhariam, ao sabor das crises de ambição e de voracidade.
Deposto êsse critério, a nu apareceriam a fraude, a astúcia, a anarquia.
Progrediram os laboratórios e, indispensável se torna, entre nós, conhecedores e cooperadores de quantas novas conquistas os enriquecem e infestam, repetir aqui essas ousadas escaladas da sabedoria e da técnica.
Mas, não transitaram a par, o diapasão e o debrum moral da espiritualidade, sem cuja moldura a ciência fenesce e resulta avizinhada de impotência, como consecussão do bem estar humano.
Não se admita desconexidade entre as duas idéias, porquanto a ciência, se algo conhece, muito desconhece e, sem o bloquel dos sentimentos de espiritualidade, não será agente de venturas.
“Wee see nothing cleary.
All objects are invested with
a certain degree of mystere.”
Sanders.
Ocorre pois, como dever iniludível e irrecusável, às aspirações onde se congregue o saber das elites, o não esquecimento dêsse slogan – “Laboratório e espiritualidade”, amparo eficiente contra horas de crueldade e perigo, garantia da civilização.
Ciência para conservar e elevar e jamais para destruir e rebaixar. Munida dêsse exequatur, a ciência será mais do que humana porque será divina.
É imperativo para as associações sábias, como esta Academia, órgãos procedentes do espírito vigilante de manter, a estabilidade das instituições, sem fechar as suas portas às achegas preciosas, trazidas pela evolução, pavimentar as rotas da civilização, com o produto da sua sabedoria e da sua consciência.
A Farmácia e o quanto lhe é afim e articulado, como fator econômico, nos quadros sociais do país, se impõe ainda um reclamado dever, incompletamente desempenhado.
Determine-se ela a operar nessa direção, patrocinando e batendo-se com denodo que a caracteriza e enobrece, por uma patriótica idéia: o do aprimoramento complementar daqueles que passam acrescer o brilho, a economia. e a benemerência da ciência universal.
Certo, os olhos e o patriotismo não terão dificuldade em enxergar, claramente, o que seria para o país, promover os meios, no sentido de criar grandes técnicos, estiolados dentro da bitola estreita, âmbito proibitivo de nossas possibilidades econômicas e técnicas.
A Indústria farmacêutica, sem ser rica, é próspera. Ela acertaria o primeiro passo, o de estímulo, a fim de conduzir para os meios mais adiantados, a capacidade de muitos ou pelo menos de alguns, que entre nós, jazem relegados à insuficiência dos meios de progredir, até ao limite desejável de eficiência.
Batamos à porta do macro e do micro mecenato das fortunas do país, em nome da pobreza do Brasil.
E nesse dia abençoados surgirão, para a grandeza nacional, inúmeros César Lates, Carlos Botelho, Cardoso Fontes, Paulo Seabra, Liberam, Osório de Almeida e os demais astros de primeira linha, no firmamento da ciência.
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Ao despedir-me de vós, mais uma vez, para reentrar no refúgio e nos meandros perolados da meditação; no anfiteatro e nos cenários imensos e sugestivos do silêncio, levo dêste lugar e dessa tertúlia, a imperecivel recordação da sua lareira, da sua tepidez de civilização, recesso onde se respiram delicadas olências, evoladas do bálsamo e das fragâncias da fraterna ternura.
Êsse calor e êsse lume, despertados e vivos na alma, me animarão e defenderão contra a gelidez e a aspereza das agressões exteriores e dos livores e dolências interiores.
“NUNO DEMITTI ME, SERVUM TUUM, DOMINE”.
Fonte: Anais da Academia Nacional de Farmácia. Vol.I. Anos 1949 – 1953. Rio de Janeiro: Casa da Farmácia. 1953. p.44-53.
Texto transcrito do original.